Palestra “Lembrar para não esquecer”

LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER

CARLOS EDUARDO DOS REIS

 

Boa tarde a todos e a todas!

O NIEAAB – Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africano e Afro- Brasileiro agradece a presença de todos, neste mês da CONSCIÊNCIA NEGRA, com o tema LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER, uma reflexão sobre o nosso passado, um olhar para o presente, mediante as muitas incertezas do futuro.

Até pouco tempo atrás, era muito comum, ouvirmos de estudantes em salas de aula a seguinte pergunta: O que foi feito dos negros escravos após a libertação? Essa pergunta incomodava muitos professores, pois a história escrita nos livros didáticos, não dava conta de explicar, o esquecimento, além do constrangimento presenciado várias vezes, quando se tinha em sala de aula, um aluno negro, no meio dos demais colegas. Falar de sua história e do passado parecia constituir algo a ser esquecido sem contar que na maioria das vezes o professor não tinha sequer nenhuma outra informação sobre a História do negro no Brasil e a História da África se limitava a citar as regiões que nos tinham mandado os escravos. Até que ponto isto mudou, ainda não sabemos.

Em 1852, o poeta Antônio Gonçalves Dias, a serviço do Imperador D. Pedro II, elaborou um relatório a cerca da INSTRUÇÃO PÚBLICA EM DIVERSAS PROVÍNCIAS DO NORTE, em seu relatório final, terminava com as seguintes recomendações ao Império:

Concluirei fazendo observar que duas classes da nossa população não recebem ensino, nem educação alguma – os índios e os escravos”. (…) Quero crer perigoso dar-se lhes instrução; mas por que não se há de dar uma educação moral e religiosa? Não será necessário prepara-los com muita antecedência para um novo estado a ver se evitamos perturbações sociais, que semelhantes atos têm produzido em outras partes, ou quando reivindicam por meios violentos – ou quando o governo imprudentemente generoso os surpreende com um dom intempestivo? Centenas de escravos existem por esses sertões, aos quais falta com as noções mais simples da religião e do dever, e que não sabem ou não compreendem os mandamentos de Deus. Educa-los, além de ser um dever religioso, é um dever social, por que a devassidão de costumes, que neles presenciamos, será um invencível obstáculo da educação da mocidade.

Ao nosso clero, quando o colocarmos em outras circunstâncias, está por ventura reservado melhorar a educação da classe livre, reabilitando moralmente os escravos. Ele talvez possa conseguir o derramamento da instrução, tornando-a um dever religioso, aconselhando-a pregando-a – recomendando a frequência das escolas – não ministrando a primeira comunhão senão aos que lhes apresentarem atestados de exame, e não admitido ao Matrimonio, senão com muita dificuldade, aos livres analfabetos.

 

“O que se deve pretender é que estejam estritamente ligados entre si – a família, a escola e a igreja – que, por conseguinte marchem em comum acordo, pelo mesmo caminho, possuídos da mesma vontade e do mesmo espírito – pai, pastor e o mestre.”. (1).  

O relatório acima, escrito alguns anos antes da Princesa Isabel, decretar o fim da chamada escravidão legal no Brasil, nos fornece a medida exata do que estaria por vir, no tocante a postura do Estado Brasileiro com relação à população negra no Brasil.

Em primeiro lugar, destaca-se a recomendação do autor,  de que ao negro dever-se-ia dar educação moral e religiosa, INSTRUÇÃO NÃO, pois era preciso antes prepara-los para uma possível Liberdade ( estaria Gonçalves Dias antecipando o fim do regime escravocrata?) e que isso evitaria perturbações sociais serias, ameaçando a ordem constituída das coisas. O negro era visto como algo a ser civilizado e enquadrado na moral do cristianismo, a exemplo dos índios catequizados  sua devassidão de costumes precisaria ser controlada, era um obstáculo à sociedade.

Neste projeto de Estado Nação, caberia a Igreja a reabilitação moral dos escravos, pois como deixou claro nosso autor, essa classe de pessoas na sociedade brasileira não deveria ser INSTRUÍDA e sim moralizada. Talvez esse trecho explique um pouco a atual política de cotas e de ação afirmativa!

Observem, que até para receber a sacrossanta benção da igreja, esse precisaria apresentar seu atestado de civilizado, postura essa muito comum na sociedade brasileira do século XIX. O mais importante nesta nota de Gonçalves Dias é o fato de dizer claramente que em primeiro lugar o Estado Imperial não deveria se comprometer com a educação dos escravos, essa tarefa caberia ao clero, e a condição de participar da sociedade era marchar de comum acordo com as leis de DEUS e da civilização.

Essa condição se estendera por todo final do século XIX e XX, como todos nós sabemos.

Mas só vamos ao passado, em função daquilo que o presente nos coloca, como problema. Se no século passado o poeta Gonçalves Dias se notabilizou pela sua canção do exílio, no presente não podemos de deixar de lembrar-se do Presidente Lula, que procurou estreitar de muitos modos à relação do Brasil com a África.

Em 2005, em uma visita ao Senegal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pediu “perdão pelo que fizemos aos negros”, durante uma vista a Ilha de Gorée, na costa senegalesa.

Gorée foi um dos mais importantes e ativos portos do litoral africano no comércio de escravos, retratado com propriedade no documentário “SLAVE TRADE”, narrado e ancorado por importantes historiadores africanos e acidentais.

A referência a este documentário é importante, pois começa com uma visita de turistas afro-americanos em busca de seu passado, onde se deparam com um museu a céu aberto das memórias do comércio de escravos e uma narrativa cruel por parte do guia, das atrocidades cometidas com negros assim que chegavam à ilha, aguardando seu embarque nos terríveis navios tumbeiros.

Ao que tudo indica, esse mesmo horror deve ter tomado conta do presidente, pois afirmou que a passagem por Gorée, foi o que mais o impressionou em sua viagem de cinco dias pelo continente africano, e que findava no Senegal.

Mas as falas presidenciais aos africanos não pararam por aí, ouçamos alguns trechos a mais:

Vi muitas fotografias de muitas pessoas que vieram aqui, mas apenas uma, que morreu e foi enterrada na sexta feira (o presidente fazia referencia a morte do Papa João Paulo 2º ), teve a humildade de vir aqui e pedir perdão.(…) A dor da escravidão, é como dor de cálculo renal. Não adianta contar, só sentindo. (…) Eu queria dizer ao presidente do Senegal, Abdulaye Wade, ao povo do Senegal e da África que não tenho nenhuma responsabilidade pelo que aconteceu nos séculos 16, 17 e 18, mas que é uma boa política dizer ao povo do Senegal e da África perdão pelo que fizemos aos negros. (…) O fato de a África ser um continente economicamente e industrialmente atrasado não é porque os africanos não tem competência ou inteligência. É porque por três ou mais séculos se tiraram daqui as pessoas mais saudáveis. Mas essas pessoas e seu sofrimento ajudaram a construir o meu país. Se não fosse a miscigenação, não teríamos o povo maravilhoso que é o brasileiro. (…) Em 40 ou 50 anos, não estejamos aqui apenas lembrando essa tristeza, mas também comemorando o sucesso de nossos países.” (2)

Esse conjunto de falas do presidente Lula, aparentemente frases de efeito e de senso comum próprios dos estadistas ocidentais quando em visita a outras Nações, que precisam mostrar seu “interesse respeitoso” pelas desgraças nacionais e econômicas dos seus parceiros, a fim de que fechem bons acordos comerciais de cooperação e venda de serviços, principalmente aos africanos, nos remetem de fato a processos históricos e sociais, a profundos problemas de nosso presente.

Em primeiro lugar o presidente faz referência a Igreja Católica, na figura do seu mais alto líder o PAPA, que teve a humildade de ir ao continente africano pedir perdão pelas atrocidades cometidas ao longo de séculos de escravidão. A Igreja católica foi uma das instituições que mais se beneficiaram do tráfico de escravos dentro e fora do Brasil, as fazendas da Companhia de Jesus, espalhadas pelo Brasil eram repletas de escravos a serviço do Santo Papa, e com a conivência das autoridades coloniais, autorizando inclusive a concessão de navios para que os eclesiásticos praticassem o tráfico de escravos da Guine.

Mas porque o Presidente teria que pedir perdão aos africanos pelo que aconteceu durante séculos e séculos de escravidão negra? O teríamos feito aos negros afinal de contas? Estaria o presidente fazendo de sua culpa cristã e pedindo perdão pelas atrocidades cometidas pelos escravocratas e comerciantes brasileiros com os escravos? E o que dizer dos séculos de silêncio da Igreja quanto ao fato? E o que seria uma boa política dizer ao povo senegalês que sentimos muito por séculos de atrocidades? O presidente estaria pedindo perdão para quem afinal?

Outro aspecto central dessa fala presidencial foi quando o presidente se referiu a África como um continente economicamente e industrialmente atrasado, não porque os africanos não eram inteligentes e competentes, e sim porque a escravidão havia ceifado as pessoas mais saudáveis.

Ora, como frisamos acima na passagem do poeta Gonçalves Dias, os ocidentais para justificar suas atrocidades e o extermínio do africano, forjaram a ideologia da inferioridade racial do negro e consequentemente a sua inadaptação a civilização, como mostra claramente as falas do poeta. Atraso econômico, industrial, competência e inteligência, ou as pessoas mais saudáveis. O que seriam as pessoas mais saudáveis de África?

Na verdade o eufemismo das palavras esconde atrocidades e reafirmam estereótipos fundados nas mais atrozes ideologias de extermínio humano, criadas pelo homem.

O presidente também afirmou que os africanos ajudaram a construir o Brasil. Porém afirma que, se não fosse à miscigenação, não teríamos um povo maravilhoso que é o brasileiro.

Aqui o eufemismo presidencial, atinge o seu ápice, pois observem, e se o negro não tivesse-se miscigenado, nosso povo seria maravilhoso, e se fossemos realmente uma nação de negros como no Haiti, esse país seria abençoado por Deus e bonito por natureza, ou teríamos o destino cruel dos haitianos?

Ao longo de nossa história, principalmente nos séculos XIX e início do século XX, procurava-se discutir o que se faria com o negro, qual seria o seu papel na construção do Brasil. Afinal quem seria o POVO BRASILEIRO?

No processo de construção da Nação, o negro foi excluído, a farta literatura nos mostra o horror de nossas elites por um país negro, a busca pela europeização e branqueamento de nossa população, redundou em Casa Grande e Senzala, elogio ao branqueamento e a negação explícita de nosso passado colonial, e o elogio à piedade do branco.

Um dos processos mais violentos de exclusão social já presenciado na História do Brasil foi negar aos africanos e seus descendentes o acesso a Educação, que marcaria e selaria o destino de milhões de jovens a marginalidade e a violência.

Um importante estudo do IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, e da UFF – Universidade Federa Fluminense, denominado “Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90”, de julho de 2001, apontou o tamanho dessa desigualdade e o abismo histórico nesta questão.

De acordo com este estudo, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade girava em torno de 6,1 anos de estudo, enquanto um jovem branco da mesma idade tinha 8,4 anos de estudo. O diferencial era de 2,3 anos de estudo. Pondera o estudo ainda que, a intensidade dessa discriminação racial expressa em termos de escolaridade formal dos jovens adultos brasileiros, era extremamente alta, sobretudo se lembrássemos de que se tratava de 2,2 anos de diferença em uma sociedade cuja escolaridade média dos adultos girava em torno de 6 anos.

Embora intensa, ponderava ainda o estudo, esse não era o componente mais inquietante na discriminação observada. Em termos de projeto de sociedade que o país estava construindo, o mais inquietante era a evolução histórica e a tendência em longo prazo dessa discriminação, pois esta vinha aumentando de forma continua ao longo do século XX, e era a mesma vivida pelos pais desses jovens e a mesma observada entre os seus avós, mantendo-se absolutamente estável entre as gerações. (3)

Em termos de projeto de Nação, fica evidenciado por esses dados, que no final do século XX, a fala do poeta Gonçalves Dias, havia-se realizado plenamente.

Ao longo de todo o século XX e inicio desse novo século, o país passou por profundas transformações históricas, galgamos os mais elevados índices de desenvolvimento em certos períodos de nossa história, crescemos e evoluímos em quanto Nação, adotamos os mais sofisticados critérios de desenvolvimento e cultura do mundo civilizado, no entanto a população negra do Brasil e seus descendentes, ainda esperam para saborear a doce fatia do bolo, que cresceu mas apenas alguns saboreiam as suas cerejas, enquanto outros amargam o gosto do fel.

É o que observamos nas inúmeras estatísticas que insistem em apontar as profundas desigualdades econômicas, sociais, educacionais e raciais da sociedade brasileira ao longo de sua história. O discurso se repete como um vinil arranhado em um toca disco, onde sempre se afirma que “avançamos muito, mais ainda falta um longo caminho a percorrer”. Ou seja, a questão é sempre deixada aos pósteros.

Neste mês de novembro, dedicado a “consciência negra”, LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER, é fundamentalmente descortinar o silêncio da HISTÓRIA, é a História de uma tomada de consciência.

Como nos recorda J. Ki-Zerbo, quando nos fala da necessidade da reescrita da História da África, pois mascarada, camuflada, desfigurada e mutilada, o continente africano, abatido por séculos de opressão, presenciou gerações de viajantes; de traficantes de escravos; de exploradores; de missionários; de procônsules; de sábios de todos os tipos, que acabaram por fixar sua imagem no cenário da miséria e da barbárie, da irresponsabilidade e do caos. Essa imagem foi projetada e extrapolada ao infinito, ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro.

LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER é o fundamento de nossa consciência histórica, pois a “História é uma ciência humana, pois ela sai bem quente da forja ruidosa e tumultuada dos povos. Modelada realmente pelo homem nos canteiros da vida, construída mentalmente pelo homem nos laboratórios, bibliotecas e sítios de escavações, a história é igualmente feita para o homem, para o povo, para aclarar e motivar sua consciência. (…) A História é a memória dos povos”. (4)

 

 

NOTAS:

  1. DIAS, Antônio Gonçalves. Instrução Pública em Diversas Províncias do Norte. Coleção Memórias, vol.42, fls. 336/375. In: ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da Instrução Pública no Brasil – 1500-1889. São Paulo: EDUC, Brasília: DF: INEP/MEC, 1989, p. 364/365.
  2. PAULO, Cabral. No Senegal, Lula pede perdão pela escravatura. In: Folha de São Paulo, 14/05/2005, em http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u41529.shtml – acessado em 22/11/2012, 10h19min.
  3. HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: Evolução das condições de vida na década de 90. Rio de Janeiro: IPEA – Instituo de Pesquisas Econômicas Aplicadas: UFF – Universidade Federal Fluminense, julho de 2001, p. 26/32.
  4. ZERBO, J-ki. História Geral da África: Metodologia e Pré-história. São Paulo: ÁTICA: PARIS: UNESCO, 1982, p. 21/22.